segunda-feira, março 31, 2014

Finalmente, a felicidade consiste, sobretudo, em se querer ser o que se é.

Dizei-me por obséquio: um homem que odeia a si mesmo poderá, acaso, amar alguém?
Um homem que discorda de si mesmo poderá, acaso, concordar com outro? Será capaz de
inspirar alegria aos outros quem tem em si mesmo a aflição e o tédio? Só um louco, mais
louco ainda do que a própria Loucura, admitireis que possa sustentar a afirmativa de tal
opinião. Ora, se me excluirdes da sociedade, não só o homem se tornará intolerável ao
homem, como também, toda vez que olhar para dentro de si, não poderá deixar de
experimentar o desgosto de ser o que é, de se achar aos próprios olhos imundo e disforme, e,
por conseguinte, de odiar a si mesmo. A natureza, que em muitas coisas é mais madrasta do
que mãe, imprimiu nos homens, sobretudo nos mais sensatos, uma fatal inclinação no
sentido de cada qual não se contentar com o que tem, admirando e almejando o que não
possui: daí o fato de todos os bens, todos os prazeres, todas as belezas da vida se
corromperem e reduzirem a nada. Que adianta um rosto bonito, que é o melhor presente que
podem fazer os deuses imortais, quando contaminado pelo mau cheiro? De que serve a
juventude, quando corrompida pelo veneno de uma hipocondria senil? Como, finalmente,
podereis agir em todos os deveres da vida, quer no que diz respeito aos outros, quer a vós
mesmos, como, — repito — podereis agir com decoro (pois que agir com decoro constitui o
artifício e a base principal de toda ação), se não fordes auxiliados por esse amor próprio que
vedes à minha direita e que merecidamente me faz as vezes de irmã, não hesitando em tomar
sempre o meu partido em qualquer desavença? Vivendo sob a sua proteção, ficais
encantados pela excelência do vosso mérito e vos apaixonais por vossas exímias qualidades,
o que vos proporciona a vantagem de alcançardes o supremo grau de loucura. Mais uma vez
repito: se vos desgostais de vós mesmos, persuadi-vos de que nada podereis fazer de belo,
de gracioso, de decente. Roubada à vida essa alma, languesce o orador em sua declamação,
inspira piedade o músico com suas notas e seu compasso, ver-se-á o cômico vaiado em seu
papel, provocarão o riso o poeta e as suas musas, o melhor pintor não conquistará senão
críticas e desprezo, morrerá de fome o médico com todas as suas receitas, em suma Nereu
(34) aparecerá como Tersites, Faão como Nestor, Minerva como uma porca, o eloqüente
como um menino, o civilizado como um bronco. Portanto, é necessário que cada qual
lisonjeie e adule a si mesmo, fazendo a si mesmo uma boa coleção de elogios, em lugar de
ambicionar os de outrem. Finalmente, a felicidade consiste, sobretudo, em se querer ser o
que se é. Ora, só o divino amor próprio pode conceder tamanho bem. Em virtude do amor
próprio, cada qual está contente com seu aspecto, com seu talento, com sua família, com seu
emprego, com sua profissão, com seu país, de forma que nem os irlandeses desejariam ser
italianos, nem os trácios atenienses, nem os citas habitantes das ilhas Fortunadas. Oh
surpreendente providência da natureza! Em meio a uma infinita variedade de coisas, ela
soube pôr tudo no mesmo nível. E, se não se mostrou avara na concessão de dons aos seus
filhos, mais pródiga se revelou ainda ao conceder-lhes o amor próprio. Que direi dos seus
dons? É uma pergunta tola. Com efeito, não será o amor próprio o maior de todos os bens?

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